
O meu quintal,
o nosso quintal
Esses quintais das mais velhas existem em algum lugar dentro de nós. É um encontro mais profundo com a nossa história, identidade, quem somos e o caminhos que trilhamos, as nossas escolhas. O quintal da Vó Mélia com cheiro de mato que se misturava ao cheiro de roupa limpa - sempre muito branca na minha memória - e comida deliciosa, permanece vivo em mim. A vida do casal de trabalhadores era difícil, mas as portas estavam sempre abertas para acolher a todos. Água fresca da talha de barro quebrada, o balanço de cordas feito pelo Avô Mário que reciclava latas de óleo, pedaços de madeiras e tantos outros materiais que viravam objetos em suas mãos, desde maletas às mais diferentes formas culinárias, cofrinhos cheios de segredos, brinquedos. O despertar do amor pelas histórias que a fotografia pode contar surgiu dentro de uma caixa de papelão pardo, repleta de fotos. Foi ali que, junto com meu avô, eu passava horas vendo e revivendo essas memórias, entrelaçando imagens e histórias reais ou que imaginávamos.
Depois da partida dos meus avós nunca mais pisei naquele quintal. Coisas de herança de família. Eu só passava em frente a casa, que ainda existe, resistindo à especulação imobiliária , e muitas vezes as lembranças se manifestavam em forma de lágrima. Ainda vivo na mesma região da cidade, onde meus avós moravam, a casa deles ainda faz parte do caminho para a casa dos meus pais ou para a minha casa. A paisagem muda porque o mesmo “progresso” que demoliu Teatro Municipal Carlos Gomes, Igreja do Rosário, Largo do Viaduto Cury em nome da “modernização da cidade” ainda existe.
As árvores saudáveis que cobriam a avenida, grandes recordações dos passeios com meus avós pelas ruas, foram assassinadas. Os pés de amoras deram lugares a edifícios altos. A cada dia um prédio mais alto e mais gourmet que o outro se ergue. A fumaça é insustentável, bem como o calor. O território é invadido pela gourmetização da vida e sem quintais, sem afetos. É cimento, arbusto, aquela coisa tão aparada que se enxerga a terra árida, triste, agonizando, adoecendo. Memórias sendo cimentadas.
Eu aprendi no quintal, cheio de plantas e ervas, a fazer arte. A contar história com fotografia, a escutar a minha avó e admirar a potência daquela mulher que colocava suas tintas, pincéis e fazia sua arte na mesa que a gente tomava chá de hortelã, comia macarronada e bolo de frutas no natal.
O quintal não é somente uma resposta, assim como no meus sonhos, é o (re)ligar conosco, nossa ancestralidade e memórias, nos conectando com a terra, folhas, cheiros, uma outra vida, um outro lugar e nas suas possibilidades, mesmo que tudo pareça perdido. Porque, na realidade, tudo está conectado e interligado.
A nossa interligação está também nas fotografias das mulheres, minha avó está presente, as peças em crochê que passeiam em diferentes lugares nas imagens, são colchas que eram da minha avó herdadas por minha mãe, e que agora estão comigo.
E como tudo neste projeto tem uma conexão ancestral, no decorrer dele, um sopro de vento balançou as folhas do meu quintal. E depois de mais de 30 anos sem pisar no Quintal da Vó Mélia coloquei os pés novamente naquele lugar que se encontra transformado, mas a velha babosa, plantada por ela, ainda estava no mesmo lugar.
E o nosso quintal?
Vivenciar, viver o nosso quintal, não é tarefa fácil. Temos que preparar a terra com as ferramentas, vai ferir e depois calejar. Escolher sementes e a hora de plantar. A seleção do que queremos nem sempre é clara. E a hora? Qual o tempo certo? Será que existe o certo? Que tipos de folhas queremos ter no nosso quintal. Que tipo de nutrição? Cura? Amor? Felicidade? Tudo junto? Adubar e regar a terra. Nem água demais, nem água de menos. Como saber que estamos em um bom caminho? Talvez mexendo na terra e percebendo que ela agora produz as minhocas que vieram fertilizar o nosso solo. Olhar para as folhas e ver borboletas, as abelhinhas se alimentando nas flores do manjericão, perceber outras vidas neste quintal. Perceber o tempo, o ritmo dele e a natureza ensinando que muitas sementes que caem podem ser guardadas e distribuídas para brotarem em outros quintais.